Publicado no informativo nº 906 do STF.
O Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em arguições de descumprimento de preceito fundamental para declarar a não recepção da expressão "para o interrogatório" constante do art. 260 (1) do CPP, e a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado (Informativo 905).
O Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em arguições de descumprimento de preceito fundamental para declarar a não recepção da expressão "para o interrogatório" constante do art. 260 (1) do CPP, e a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado (Informativo 905).
O Tribunal destacou que
a decisão não desconstitui interrogatórios realizados até a data desse
julgamento, ainda que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos
para o referido ato processual.
Prevaleceu o voto do
ministro Gilmar Mendes (relator).
De início, o relator
esclareceu que a hipótese de condução coercitiva objeto das arguições
restringe-se, tão somente, àquela destinada à condução de investigados e réus à
presença da autoridade policial ou judicial para serem interrogados. Assim, não
foi analisada a condução de outras pessoas como testemunhas, ou mesmo de
investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento.
Fixado o objeto da
controvérsia, afirmou que a condução coercitiva no curso da ação penal
tornou-se obsoleta. Isso porque, a partir da Constituição Federal de 1988, foi
consagrado o direito do réu de deixar de responder às perguntas, sem ser prejudicado
(direito ao silêncio). A condução coercitiva para o interrogatório foi
substituída pelo simples prosseguimento da marcha processual, à revelia do
acusado [CPP, art. 367 (2)].
Entretanto, o art. 260
do CPP — conjugado ao poder do juiz de decretar medidas cautelares pessoais —
vem sendo utilizado para fundamentar a condução coercitiva de investigados para
interrogatório, especialmente durante a investigação policial, no bojo de
engenhosa construção que passou a fazer parte do procedimento padrão das
investigações policiais dos últimos anos. Nessa medida, as conduções
coercitivas tornaram-se um novo capítulo na espetacularização da investigação,
inseridas em um contexto de violação a direitos fundamentais por meio da
exposição de pessoas que gozam da presunção de inocência como se culpados
fossem.
Quanto à presunção de
não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), seu aspecto relevante ao caso é a
vedação de tratar pessoas não condenadas como culpadas.
A condução coercitiva
consiste em capturar o investigado ou acusado e levá-lo, sob custódia policial,
à presença da autoridade, para ser submetido a interrogatório. A restrição
temporária da liberdade mediante condução sob custódia por forças policiais em
vias públicas não é tratamento que possa normalmente ser aplicado a pessoas
inocentes. Assim, o conduzido é claramente tratado como culpado.
Por outro lado, a
dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), prevista entre os princípios
fundamentais do estado democrático de direito, orienta seus efeitos a todo o
sistema normativo, constituindo, inclusive, princípio de aplicação subsidiária
às garantias constitucionais atinentes aos processos judiciais.
No contexto da condução
coercitiva para interrogatório, faz-se evidente que o investigado ou réu é
conduzido, eminentemente, para demonstrar sua submissão à força. Não há
finalidade instrutória clara, na medida em que o arguido não é obrigado a
declarar, ou mesmo a se fazer presente ao interrogatório. Desse modo, a
condução coercitiva desrespeita a dignidade da pessoa humana.
Igualmente, a liberdade
de locomoção é vulnerada pela condução coercitiva para interrogatório.
A Constituição Federal
consagra o direito à liberdade de locomoção, de forma genérica, ao enunciá-lo
no “caput” do art. 5º. Tal direito pode ser restringido apenas se observado o
devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e obedecido o regramento estrito sobre
a prisão (CF, art. 5º, LXI, LXV, LXVI, LXVII). A Constituição também enfatiza a
liberdade de locomoção ao consagrar a ação especial de “habeas corpus” como
remédio contra restrições e ameaças ilegais (CF, art. 5º, LXVIII).
A condução coercitiva
representa uma supressão absoluta, ainda que temporária, da liberdade de
locomoção. O investigado ou réu é capturado e levado sob custódia ao local da inquirição.
Portanto, há uma clara interferência na liberdade de locomoção, ainda que por
um período determinado e limitado no tempo.
Ademais, a expressão
“para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP, tampouco foi
recepcionada pela Constituição Federal, na medida em que representa restrição
desproporcional da liberdade, visto que busca finalidade não adequada ao
sistema processual em vigor.
Por fim, em relação à
manutenção dos interrogatórios realizados até a data desse julgamento, mesmo
que o interrogado tenha sido coercitivamente conduzido para o ato, o relator
consignou ser necessário reconhecer a inadequação do tratamento dado ao
imputado, não do interrogatório em si. Argumentos internos ao processo, como a
violação ao direito ao silêncio, devem ser refutados.
Assim, não há
necessidade de debater qualquer relação da decisão tomada pelo STF com os casos
pretéritos, inexistindo espaço para a modulação dos seus efeitos.
O ministro Celso de
Mello acrescentou que a impossibilidade constitucional de constranger-se o
indiciado ou o réu a comparecer, mediante condução coercitiva, perante a
autoridade policial ou a autoridade judiciária, para fins de interrogatório,
resulta não só do sistema de proteção das liberdades fundamentais, mas, também,
da própria natureza jurídica de que se reveste o ato de interrogatório.
Referido ato processual
é qualificável como meio de defesa do acusado, especialmente em face do novo
tratamento normativo que lhe conferiu a Lei 10.792/2003. Essa particular
qualificação do interrogatório como meio de defesa permite que nele se
reconheça a condição de instrumento viabilizador do exercício das prerrogativas
constitucionais do contraditório e da plenitude de defesa.
De todo modo, a ausência
de colaboração do indiciado ou réu com as autoridades públicas e o exercício da
prerrogativa constitucional contra a autoincriminação não podem erigir-se em
fatores subordinantes da decretação de prisão cautelar ou da adoção de medidas
que restrinjam ou afetem a esfera de liberdade jurídica do réu.
Por fim, afirmou que não
haveria como concluir que a condução coercitiva do indiciado ou do réu para
interrogatório, independentemente de prévia e regular intimação,
justificar-se-ia em face do poder geral de cautela do magistrado penal. Isso
porque, diante do postulado constitucional da legalidade estrita em matéria
processual penal, inexiste, no processo penal, o poder geral de cautela dos
juízes.
Vencidos, parcialmente,
os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen
Lúcia (Presidente).
O ministro Alexandre de
Moraes julgou parcialmente procedente o pedido formulado nas arguições para
declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 260 do
CPP, unicamente para excluir a possibilidade de decretação direta da condução
coercitiva sem a prévia intimação com base no poder geral de cautela do juiz.
Considerou, assim,
legitima a utilização do instituto da condução coercitiva para interrogatório,
porém, desde que o investigado não tenha atendido, injustificadamente, prévia
intimação, permitida a participação do defensor do investigado e resguardados
os direitos ao silêncio e a não-autoincriminação.
O ministro Edson Fachin
julgou parcialmente procedente o pedido para atribuir interpretação conforme a
Constituição Federal ao art. 260 do CPP no sentido de ressalvar a possibilidade
de decretação judicial e fundamentada da condução coercitiva em substituição a
medidas cautelares típicas mais graves, como a prisão preventiva ou a prisão
temporária, desde que integralmente presentes os requisitos legais e
constitucionais dessas medidas.
Ademais, declarou a
inconstitucionalidade da interpretação ampliativa do dispositivo impugnado,
impondo-se a prévia intimação e o não comparecimento injustificado do intimado
para a realização da condução coercitiva.
Os ministros Roberto
Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente) acompanharam o ministro Edson
Fachin.
(1) CPP:
“Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o
interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa
ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.”
(2) CPP: “Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.”
ADPF 395/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-395)
ADPF 444/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-444)
(2) CPP: “Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.”
ADPF 395/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-395)
ADPF 444/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-444)