Uma
questão que ainda oscila na jurisprudência brasileira diz respeito às
consequências de eventual produção probatória por parte do juiz no processo
penal. Embora pareça ser de simples resolução diante do Texto Maior, em âmbito
prático ainda há enorme resistência em vislumbrar o óbvio. Mas, Darcy Ribeiro
já dizia: “Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão
recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de gente – os cientistas
– para ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio.”[1] Pois passa-se a ele.
Os
Tribunais Superiores têm-se manifestado no sentido de que a atuação ex-officio
do juiz é permitida em determinados casos, ao argumento de busca pela
verdade real, tal como no malfadado artigo 156 do Código de Processo Penal. Ocorre
que, a doutrina mais garantista de há muito aponta a incoerência em se atribuir
a tarefa de julgar a um terceiro que participe do jogo processual, isto é, como
é possível que alguém seja, ao mesmo tempo, destinatário e gestor das provas
sem que com elas crie identificação (simpatia), sobretudo em relação às quais produziu
ou ordenou a produção?
A
temática, dessa forma, está intrinsecamente relacionada à imparcialidade do órgão
judicante e a necessidade de preservação da originalidade cognitiva, ou seja,
ausência da formação de pré-juízos em relação ao objeto do processo.
A
própria ideia de Jurisdição exige a adoção de um sistema em que esse terceiro
se situe em uma posição de distanciamento, de inércia, como um figurante de um
filme em que os atores principais são as partes (acusação e defesa) ou um
árbitro de futebol durante o jogo, cuja tarefa é a de ser o guardião das normas
e aplicá-las quando cabíveis, sem se imiscuir nas atividades dos jogadores.
O juiz
deve, portanto, entrar e permanecer no jogo alheio ao interesse das partes,
ainda que isso lhe custe desconforto pessoal como ser-no-mundo. A questão é, recordando Ernst Kantorowicz[2], o adequado tratamento dos
“dois corpos do rei”, ou seja, decisão judicial não é sinônimo de escolha. Há
um “corpo físico e outro espiritual”. Na vida privada, pouco importa as
escolhas que fizer, mas na esfera pública o magistrado tem responsabilidade
política e deve agir por princípio, suspendendo pré-juízos e opiniões pessoais
(STRECK).
Feitas
essas considerações iniciais e retomando o curso para a questão central,
apresenta-se os fundamentos normativos para que se possa, até mesmo por conta
própria, responder à indagação: quais as consequências da atuação de ofício do
magistrado no processo penal?
Um dos
grandes avanços civilizatórios proporcionados pela ordem constitucional de 1988
fora o fortalecimento de uma estrutura dialética de processo, onde cabe às
partes a tarefa de gestão das provas. O
art. 129, inciso I, da Constituição Federal, estabelece como função
institucional e privativa do Ministério Público, a promoção da ação penal pública.
Logo, o texto constitucional não diz advogado, defensor público, magistrado.
Por isso, é preciso respeitar os limites semânticos de um texto, eis que é ele
a condição de possibilidade para uma interpretação constitucionalmente adequada[3].
Quis o
novel constituinte claramente estabelecer a separação das funções no jogo
processual penal. Isto é, no actum trium
personarum, desde Búlgaro, às partes – acusação (MP) e defesa – cabem a
tarefa de gestão das provas, e a um magistrado imparcial, o dever de julgar
conforme o Direito. No entanto, no Brasil isso sempre foi mal compreendido. Não
é novidade nenhuma a aliança firmada entre Ministério Público e Judiciário em
algumas comarcas deste país: juízes que produzem prova, promotores que presidem
audiência, etc. Tudo à revelia da Constituição.
A
reforma processual de 2008 introduziu mudança substancial no art. 212 do CPP,
adotando expressamente o cross
examination:
Art. 212. As perguntas serão
formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas
que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem
na repetição de outra já respondida
Parágrafo único. Sobre os pontos
não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição
Observa-se
que ao magistrado somente é dado o direito de complementar a inquirição sobre pontos não esclarecidos, mas não
de promover a acusação como parte, ante a nítida violação ao dever de
imparcialidade. Ora, quem procura, procura algo, e diante do princípio constitucional
da presunção de inocência, o que precisa ser encontrado é prova para
condenação, não para absolvição. Se o magistrado é quem produz a prova, a
própria ideia de complementaridade resta maculada. Simples, pois.
Não
obstante vigente desde 2008, o cross-examination é objeto de
relativização por parte da jurisprudência brasileira, cujo entendimento
majoritário, ao menos anteriormente à introdução do art. 3º-A no CPP, é o de
que a inobservância gera, no máximo, nulidade relativa, cujo reconhecimento demanda
que a parte o alegue em momento oportuno e demonstre o prejuízo, além de contar
com uma dose de boa vontade e subjetivismo dos Tribunais.
No RHC
113.293/SP, por exemplo, o STJ concluiu que “a formulação das perguntas das
partes pelo Magistrado, e não diretamente, embora não observe a redação do art.
212 do Código de Processo Penal, não revela, por si só, nulidade processual.”
De outro lado, de maneira excepcional, no REsp 1259482/RS reconheceu a nulidade
em razão do magistrado ter protagonizado a inquirição, em nítida substituição
do órgão acusatório.
A
despeito da jurisprudência vacilante, acredita-se que com o advento da Lei nº 13.964/2019,
com destaque para a redação do art. 3º-A do CPP[4], o tema deve ser
pacificado no sentido de que a inobservância ao dispositivo supratranscrito – e
a qualquer outro que objetive a preservação do sistema acusatório – ocasionará
a nulidade absoluta, com a anulação dos atos praticados e dos com que ele se
relacione, assim como afastamento da autoridade psiquicamente contaminada para
atuar no feito (art. 157, §5º, CPP).
Não
bastasse mais de 30 (trinta) anos de redemocratização, inúmeros patuleus
sacrificados em um processo penal primitivo, rios de tinta e recursos públicos
gastos para reafirmar o óbvio, tal como recentemente fez o art. 3º-A do CPP, ainda
sim setores da comunidade jurídica repetirão resquícios da Idade Média como
“verdade real e plenitude de acusação”?
A
nosso ver, o que antes já encontrava amparo nos artigos 129, inc. I, da CF e
212 do CPP é reafirmado pelo denominado “Pacote Anti-crime” ao expressamente
vedar a iniciativa probatória do juiz e a substituição do órgão acusatório.
Se for
dado ao magistrado o poder de produzir toda a prova que mais tarde irá utilizar
para condenar o indivíduo submetido ao processo penal, não faz sentido algum
que a viúva arque com os altos custos para a manutenção da instituição
ministerial. Há de se rechaçar atitudes como essa ou admitir que não se
respeita mesmo os limites da lei. Só se
pode complementar o que antes já se iniciou. Tertium non datur.
Entretanto,
não é demais lembrar que o Direito é um campo fértil
para a institucionalização das relações simbólicas de poder e o lócus
privilegiado de sustentação do status quo,
principalmente em um quadrante histórico em que a legalidade constitucional tem
sido suplantada por argumentos morais de diversas ordens.
Resta
saber se os setores do poder permitirão o diálogo leal e democrático, como deve
ser. Que o jogo tenha paridade de armas e não estratégias de bastidores e
corporativismos. Até então, a ideia que fica é a de que “faltou combinar com os
russos.”[5]
[3]Veja-se
nesse sentido os avanços no campo da hermenêutica filosófica com
Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger. No Brasil, Lenio Streck tem
capitaneado a luta.
[4] Art.
3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa
do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão
de acusação.
[5] Registra-se que os
artigos 3º-A e 157, §5º, do CPP, assim como as inovações que tratam do Juiz das
Garantias, encontram-se com a eficácia suspensa por
força de decisão monocrática do Min. Luiz Fux que deferiu cautelar nas
ADI’s 6.298,
6.299, 6.300 e 6.305, ao argumento de que, em juízo
perfunctório, pode-se verificar possível ofensa ao art. 96 da Constituição
Federal (inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa), dada a natureza
jurídica, na visão dele, híbrida da norma (processual, mas também de
organização judiciária). A matéria resta pendente, portanto, de apreciação pelo
plenário da Suprema Corte.