PRISÃO TEMPORÁRIA: DA EXCEPCIONALIDADE À BANALIZAÇÃO

A prisão temporária é um resquício autoritário da antiga prisão para averiguações, em que pese a ordem seja emanada por autoridade judicial, tendo sido introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Medida Provisória nº 111, de 24/11/1989, e convertida na Lei nº 7.960/89 (ver aqui).
Questiona-se, a respeito, possível ofensa ao disposto nos artigos 22, inciso I, e 62, §1º, inc. I, alínea “b”, ambos da Constituição Federal, eis que há uma exigência de que matéria processual penal e penal seja tratada por lei em sentido estrito, sendo vedada a edição de medida provisória (EC nº 32/2001). 
De outra banda, aponta-se violação ao due process of law, na medida em que se inverte a ordem natural de um processo-crime em um Estado Democrático de Direito, isto é, prende-se para investigar. Revela-se mecanismo utilizado de há muito pela Santa Inquisição, onde se buscava infligir todo tipo de tortura psicológica ao investigado, posto à disposição da instituição para a colheita da prova.
Nada obstante, ainda que admitida a constitucionalidade da prisão temporária, o que será objeto de maior análise em outro texto, é preciso ter em mente que a (pré)cautelaridade que lhe é inerente, assim como a Lei 7.960/89, exige a demonstração do fumus commissi delicti (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria) e  periculum libertatis (perigo que decorre do estado de liberdade do imputado), dado que esta não pode servir como forma de antecipar eventual pena privativa de liberdade, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII, CF).
A prisão temporária se dirige à tutela da investigação preliminar, daí seu caráter precautelar com a principiologia que lhe é própria: jurisdicionalidade, motivação, contraditório, provisionalidade, provisoriedade, excepcionalidade e proporcionalidade.
A exigência do fumus commissi delicti (requisito) tem previsão no artigo 1º, inciso III, da Lei 7.960/89, sendo necessária fundadas razões de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes previstos no rol taxativo do diploma legal.
Já o periculum libertatis (fundamento) pode ser extraído do art. 1º, I, da referida Lei, ou seja, a imprescindibilidade da prisão para a investigação estará caracterizada quando o estado de liberdade puder causar prejuízo ao regular andamento da mesma.
A criação de conjecturas para imputar ao investigado indícios de autoria delitiva não é suficiente para a decretação da prisão provisória, eis que esta deve ser imprescindível e não meramente conveniente.
No tocante ao fundamento, há de se ter demonstração concreta de que o investigado interfere de alguma forma no andamento das investigações, sem o quê a liberdade não coloca em risco as diligências necessárias e a prisão não será tida como imprescindível.
Não é raro que a prisão provisória não passe de um mecanismo de coação tipicamente policialesco, utilizado demasiadamente na malfada Operação Lava Jato: prender para forçar uma delação.
Com Maurício Zanoide de Moraes[1], pode-se aprender que a construção cultural inquisitória microfamiliar se expande para um comportamento macrossocial. Ninguém é filho de “chocadeira”, a criança criada ontem sob uma cultura de presunções de culpa é o adulto inquisidor de amanhã. E em algum lugar este vai chegar, inclusive nos quadros da Polícia, da Magistratura e do Ministério Público. O ponto é: saber que um processo penal democrático e constitucional se constrói sob o manto acusatório, cuja presunção vigente deve ser a de inocência, não de culpa.
Muitos agentes do cenário jurídico são incapazes de partirem de um ponto de ignorância (de desconhecimento). Afinal, saber que não se sabe, mas que se precisa saber em contraditório é desconfortável para quem acredita em soluções imediatas, isto é, em presunções de culpa, em evidências. Esquecem-se, contudo, que o evidente é um simulacro de autorreferencialidade, basta por si só, dispensa prova de confirmação, é antidemocrático, pois.
Prender para investigar, por que? O que, em uma era em passamos a valorizar o exercício da Jurisdição Constitucional para a consolidação da Democracia em um país que duramente vivenciou rupturas institucionais, justifica tão prematura segregação? Se se pode admitir essa grave violação à liberdade de locomoção sem que se aponte o fundamento da prisão temporária (imprescindibilidade), ao menos há de se ter clareza: a assunção de vez como ser inquisitorial, que aceita qualquer tipo de coação em nome dos pretensos fins sociais. O resto é demagogia.
As garantias processuais penais não podem ficar à mercê da implementação de um aparelho estatal repressor que seja considerado adequado por parte dos órgãos persecutórios ou de quem quer que seja. Processo penal é limite ao exercício do poder. É contrassenso à barbárie, óbice à implementação de um estado de exceção. Não fosse a forma processual, voltaríamos a “vingança privada”. Internalizemos isso, portanto.
Em tempos que vivenciamos o atropelo da legalidade sob o pálio da Moral, importante nos lembrarmos de Luís Alberto Warat para quem “o lugar do herói é sempre – e sempre – o lugar do canalha”. Nesse ponto, indispensável dizer que Juiz corajoso é o que faz o simples: cumpre as leis e a Constituição. Uma espécie de Stoic Mujic, tal qual o personagem Donovan do filme Bridge of Spies (Ponte dos Espiões), que enxovalhado pela opinião pública segue intransigente na defesa da Constituição, porque compreende que a condição de possibilidade para vivermos regidos por regras é obedecer a regra das regras, a que fundamenta a validade de todo o sistema.
Dessa forma, temos para nós que o Juiz justiceiro não convém ao processo penal, porque concede um poder discricionário para a autoridade policial fazer o que bem entender. Um vale tudo é barbárie, não civilização. A tarefa do magistrado é a de ser o guardião da legalidade constitucional.
Veja-se que imprescindibilidade (exigência legal) não se confunde com conveniência, afinal esta última certamente estará sempre presente na mente inquisidora, a qual apregoa que “passarinho preso canta mais bonito”. A questão, e esse é o ponto fundamental de uma Democracia, é saber o preço que estamos dispostos a pagar: vale acautelar, sem fundamento legal, para amenizar a deficiência estatal em promover investigações efetivas? Se este for o caso, eventual confissão é válida? Não estamos a retroceder à Idade Média para trazer à lume a volta das ordálias?
Até mesmo o fato de um indivíduo não ter comparecido ao enterro do irmão já fora utilizado para fundamentar indício de autoria em crime de homicídio, uma espécie de referência ao personagem de Albert Camus em “O Estrangeiro”[2]. Onde vamos chegar com esses delírios?
A teratologia é ainda maior quando o magistrado alega que “o interesse coletivo em se apurar o crime sobreleva ao individual” Ora, como já apontado outrora, processo penal é limite ao exercício do poder, é óbice à barbárie. Dizer que é possível decretar a prisão por vontade coletiva é destruir a golpe de martelo os direitos fundamentais (contramajoritários) e desmoralizar a própria autoridade do Poder Judiciário, afinal se é o coletivo (a voz das ruas) que vale, para quê gastarmos com o aparato técnico e com bons Juízes?
Portanto, contra tudo e contra todos, seguimos acreditando que o Judiciário deve ser o guardião da legalidade, um freio aos impulsos morais de vingança e garantidor dos direitos e garantias fundamentais esculpidos no texto maior, rechaçando a banalização desse mecanismo de duvidosa constitucionalidade.



[1] III Congresso sobre Mentalidade Inquisitória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WEXVUmUOSWU&t=1364s
[2]Em nossa sociedade, todo homem que não chora no enterro de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte.” – Albert Camus