A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA


Imagine a seguinte situação: uma mulher de 29 anos, primária, portadora de bons antecedentes, adentra em um supermercado e furta um pacote de linguiça (1kg) avaliado em R$ 10,00 (dez reais). Realizados os procedimentos de praxe, autos encaminhados ao Ministério Público, que não apenas ofereceu a denúncia, como foi duro em dizer que “a denunciada não preenchia os requisitos legais para os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, uma vez que a Certidão de Antecedentes Criminais (CAC) demonstrava personalidade nitidamente voltada para o crime, pois a acusada era processada por outro crime doloso.” 
À primeira vista, para alguns surgirá o alarde, na linha do que fez o MP: “mas ela furtou, está errada e deve pagar pelo que fez”. Disso não discordamos. O ponto fulcral, entretanto, é outro: deve-se utilizar o Direito Penal para isso, com as consequências diretas e indiretas que produz? E mais, além de utilizá-lo, deve-se ser duro o suficiente para negar, sem amparo legal, a possibilidade de aplicar os institutos da Lei nº 9.099/95? Sob qual fundamento? Por certo que não é o de Justiça ou cumprimento da Lei.
A questão posta transcende o caso concreto, eis que retrata o imaginário jurídico de boa parte das figuras envoltas no cotidiano forense. Não raro, falta estudo do próprio Direito e para além dele. E que fique claro: não se está a atribuir a pecha da incompetência, mas do desleixo e da vaidade. Há quem possua enorme aptidão, mas prefere exercer uma vontade de poder irracional, deixando de lado o conhecimento técnico em prol de opiniões e sentimentos pessoais.
Na situação em espécie, não bastasse a completa ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência ao presumir a responsabilidade penal da acusada em relação ao outro processo em curso (apuração de participação em tentativa de estelionato), o que fora o fundamento para negar-lhe, por exemplo, a suspensão condicional do processo (SUSPRO), em nenhum momento analisou-se a tipicidade material da conduta do caso em exame.
Veja-se que, iniciada a análise do primeiro substrato do conceito analítico de crime, tem-se que a conduta, em tese praticada pela denunciada, amolda-se ao tipo penal descrito no art. 155 do CP, caracterizando a tipicidade em seu aspecto formal.
Não obstante, é cediço que, diante dos postulados da intervenção mínima e da fragmentariedade, há de se analisar a conduta sob o aspecto conglobante, dado que se reserva ao Direito Penal o caráter de subsidiariedade aos demais ramos do Direito. É nesse passo que a doutrina, retomando os ensinamentos de Claus Roxin, traz-nos o princípio da insignificância, admitido pelos tribunais superiores, para afastar a tipicidade penal em seu aspecto material.
Na conformidade constitucional do que se compreende o processo penal como um instrumento de limitação do poder estatal, deve-se sempre estar atento a ruptura paradigmática proporcionada pela Ordem Constitucional vigente, sobretudo de que princípios não são valores, princípios são normas e devem ser aplicados quando aptos a incidirem na singularidade do caso concreto.
É importante delimitar o papel dos princípios no círculo hermenêutico, que ao contrário do que muito se sustenta, torna-se responsável por individualizar a regra, ou seja, eles fecham a interpretação. Nesse sentido é a doutrina de Lenio Luiz Streck[1]:
“Essa é uma questão importante que precisa ficar melhor esclarecida. Tomemos um exemplo concreto: a regra do crime de furto – subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Mas o que é um furto? Ele se esgota em sua definição típica? Por certo que não. Na verdade, é possível dizer que todas as hipóteses de furto não cabem no enunciado do art. 155 do CP. Isso porque há uma porosidade na fórmula da regra que só se torna completa no momento em que um dado furto acontece. Nesse momento, acontece um salto! A conduta praticada concretamente no mundo da vida passa a ser significada como furto, mas não qualquer furto, mas sim aquele dado furto. Como dar conta de todas as especificidades que emanam deste dado furto? A partir da plenipontenciaridade da regra do art. 155 do CP? Por certo que não. A regra do art. 155 é porosa, dela muita coisa escapa. A densidade normativa do dado furto (ou do “furto mesmo”) só aparece no momento de sua reconstrução principiológica (...)”
A nosso sentir, a análise deve decorrer das circunstâncias do caso concreto, não havendo enunciado assertórico capaz de abranger a complexa realidade em que se vive. Assim, destaca-se que não se pode falar em “personalidade nitidamente voltada para o crime”, por haver um processo em curso. Primeiro porque ofende-se a presunção de inocência, emitindo juízo de mérito sobre fato em apuração. Segundo, porque a personalidade é um conceito complexo e técnico (biopsicossocial), não sendo estritamente da alçada jurídica.
Salienta-se que há certos requisitos, de ordem objetiva, que são comuns, a saber: (a) a mínima ofensividade da conduta; (b) a ausência periculosidade social da ação; (c) o reduzido grau reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Embora se possa compreendê-los de forma unitária, eis que relacionados aos princípios limitadores do poder punitivo anteriormente citados, não há precisão conceitual em relação a cada um.
Nessa linha, os Tribunais Superiores têm se manifestado no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância quando se trata de crime praticado com violência ou grave ameaça, bem como, em regra, exista concurso de pessoas.
Por fim, ressalta-se que com isso não se está a admitir que o Direito, em sua completude, tolera a criminalidade, afinal a regra do furto continua existindo, só não incide no caso em questão porque há um princípio que sustenta uma decisão que a afasta. É frisar que, a partir das singularidades deste dado furto, não é a isso que o processo penal serve, não quando se busca na Constituição o agrupamento das condições de possibilidade para a efetivação das promessas da modernidade.


[1] STRECK, Lenio Luiz. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto — as garantias processuais penais? — Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 76.