PRISÃO DOMICILIAR EM TEMPOS DE PANDEMIA

It's times like these
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Tempos estranhos e incertos vivem se repetindo. O mundo é surpreendido, uma vez mais, por um vírus de alta letalidade que destina nações a um cenário caótico, embora o debate ideológico insista em minimizá-lo acreditando que com isso a realidade será alterada.
Entretanto, o cerne dessas breves considerações é outro, mais especificamente analisar a situação da população carcerária no atual estágio de pandemia ocasionado pelo COVID-19.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 17 de março do ano corrente, a recomendação nº 62, para que Tribunais e magistrados adotem medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus, tendo em vista o alto índice de transmissibilidade em ambientes insalubres e com aglomeração de pessoas, dentre outras características do sistema carcerário brasileiro que levaram ao reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” (ADPF 347).
Nessa linha, O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em 16 de março, já havia expedido a Portaria Conjunta Nº 19/PR-TJMG/2020, recomendando a revisão de todas as prisões cautelares no âmbito do Estado de Minas, bem como concessão de prisão domiciliar aos indivíduos que se enquadram no perfil do grupo de risco.
Afora isso, importante destacar os fundamentos normativos que amparam o pleito da custódia domiciliar em voga.
Para quem um dia já esteve no malfadado sistema carcerário brasileiro, ainda que passagem como visitante, não é necessário descrever esmiuçadamente o que se vê, bastando um exercício de alteridade para compreensão do que aqui se trata. Dizia o poeta: “Navegar é preciso, viver não é preciso.” Pois não é preciso também, nas duas acepções do termo, julgar uma realidade que não se vive. Uma das grandes lições de se ser Advogado ou Defensor Público – e deve ou ao menos deveria ser a da Magistratura – é compreender que a dor do outro deve impactar-nos como se nossa fosse, porque de fato é.
Quando se trata de prisão domiciliar em tempos de pandemia, é preciso ser claro que em jogo está a vida de um ser humano. A ideologia do hiperencarceramento e da necessidade de demonstrar publicamente a função retributiva da pena não pode se converter em vindita. O fundamento da domiciliar diante da pandemia (COVID-19) é humanitário, o que deve estar acima do interesse parcial, dado que decorre do fundamento constitucional da dignidade humana (art. 1º, inc. III, CF).
Sabe-se que o retrato policialesco da mídia acerca dessa sociedade assolada por problemas sociais, dentre os quais está e sempre estará a criminalidade, muitas vezes causam repulsa, mas não podem desumanizar. Ainda é tarefa do Poder Judiciário ser o guardião da legalidade constitucional, e não dos sentimentos sociais.
Sob qualquer ótica que se queira analisar, fato é que não se trata de conveniência, mas de indispensabilidade reconhecida por órgãos internacionais competentes para a avaliação (OMS), bem como recomendação disciplinada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) após estudo prévio.
Ademais, não se trata de medida destinada a todo e qualquer indivíduo em situação de reclusão, mas a grupos específicos que possuem maior fragilidade no quadro de saúde.
A previsão normativa do artigo 117 da Lei de Execução Penal c/c com o artigo 3º do Código de Processo Penal, disciplina a possibilidade da concessão de prisão domiciliar, ainda que em se tratando de sentenciado em regime fechado ou semiaberto, quando a imprescindibilidade da medida esteja comprovada (vide p.ex. HC 462.147/SP, STJ).
De mais a mais, importar rememorar que na atual quadra da história, com o advento do Constitucionalismo Contemporâneo pela Ordem de 1988, ocorre uma ruptura paradigmática em relação ao modo de compreensão dos princípios jurídicos. Tem-se, pois, uma tese de descontinuidade, onde eles passam a ser dotados de força normativa (art. 5º, §1º, CF) com aplicação imediata e não mais mero método colmatador de lacunas. É dizer, uma regra só é legítima quando há um princípio que a justifique, ou seja, o princípio promove a institucionalização do mundo prático, ele cotidianiza/individualiza a regra. São as lições passadas pelo professor Lenio Streck.
Nesse contexto, no âmbito da execução penal, e aplicável ao caso sob exame, encontram-se os princípios da: a) humanidade; b) legalidade; c) individualização da pena; d) transcendência mínima;
O princípio da humanidade é previsto pela Declaração Universal dos Direitos do Homem: “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” – art. 5º, bem como pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civil e Políticos da ONU: “toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana” – art. 10, item 1. A isso, soma-se a previsão da Convenção Americana de Direitos Humanos, recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro com status hierárquico normativo supralegal, de que: “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” – art. 5º. Em âmbito interno, o princípio da humanidade decorre do fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e do princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, da CF). Isso aponta para uma visão redutora de danos, impondo ao magistrado que reconheça a pessoa presa como sujeito de direitos.
O princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) reclama que “as autoridades responsáveis pela execução penal possuam a obrigação de enxergar o preso como verdadeiro indivíduo, na acepção humana do termo, considerando suas reais necessidades como sujeito de direitos.”[1]
No âmago, ainda, está a preservação do princípio da transcendência mínima (art. 5º, XLV, da CF e art. 5º, item 3, da Convenção Americana de Direitos Humanos). Impõe-se que os efeitos penais atinjam o mínimo possível a outras pessoas (p.ex. familiares do preso). Veja-se as lições de Rodrigo Duque Estrada Roig:
“A transcendência da pena aos familiares e amigos da pessoa presa igualmente se verifica com o recolhimento desta em estabelecimento distante do local onde possui laços de convívio social. Trata-se de medida desalinhada com o princípio da humanidade, que expropria dos familiares e amigos a manutenção de contato e vínculos afetivos, além da oportunidade (e possibilidade financeira) de oferecer assistência ao preso, reduzindo seu sofrimento e a correspondente dor de seus entes e amigos.”
Por fim, aliado à principiologia constitucional supra e às disposições da Lei nº 7.210/84, tem-se ainda amparo na jurisprudência pátria. Dispõe a Súmula Vinculante nº 56 que: “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS (STF).
Dentre os parâmetros a serem extraídos, verifica-se que a falta de condições adequadas em qualquer unidade prisional para o acompanhamento médico exigido e adoção de medidas preventivas ao contágio, não autoriza manutenção do condenado no cárcere, isso porque nenhum dos regimes existentes poderá ser viável para parcela da população carcerária (grupo de risco), considerando as condições pessoais dos indivíduos, as condições estruturais da unidade prisional e, principalmente, o estágio de pandemia (COVID-19) retratado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Portanto, a custódia domiciliar humanitária é medida legítima e com amparo normativo.


[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 65.