É POSSÍVEL A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA CONDENAÇÃO IMPOSTA PELO JÚRI?


Muito embora a jurisprudência firmada após o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, onde se fixou a tese que a execução da pena privativa de liberdade só é possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, remanesce discussão acerca da viabilidade de que a vedação não se aplique aos crimes submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri.
A Lei nº 13.964/2019 introduziu a alínea “e” ao inc. I do art. 492 do CPP nos seguintes termos:
Art. 492.  Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;     (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Verifica-se a previsão de uma espécie de prisão automática como efeito da condenação no rito do júri e em razão de determinada quantidade de pena. Argumenta-se que a execução provisória nesses casos não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, eis que as decisões do Júri são soberanas, razão pela qual, em uma ponderação de princípios, este último prevaleceria.
A nosso ver, trata-se de uma construção fraudulenta, formulada por aqueles que não aceitam a normatividade do texto maior por discordâncias políticas/morais. Ocorre que, a Constituição não pode ser lida ao alvedrio do intérprete, como se fosse possível manipula-la para ser aplicada apenas quando convém.
Nesse sentir, no Brasil, Lenio Streck tem capitaneado a luta contra aqueles que dizem que princípios são valores (plano axiológico) esquecendo-se de que com o advento do Constitucionalismo Contemporâneo, ou seja, segundo pós-guerra, os princípios assumem um caráter normativo (plano deontológico), cuja observância não é discricionária, mas sim imperativa em razão de ser norma.
O golpe hermenêutico de sustentar que princípios não são absolutos e por isso podem ser afastados por critérios ponderativos (discricionários) é facilmente identificado com a compreensão do que realmente seja a técnica da ponderação Alexyana. Veja-se que nesse espaço não se pretende estender uma crítica esmiuçada acerca de Alexy, mas concentrar-se no modo tábula rasa como ele é conhecido e aplicado pelos Tribunais brasileiros. Em terrae brasilis, escolhem-se dois princípios supostamente colidentes, e sob uma máxima de proporcionalidade aponta-se para a prevalência daquele que atende aos propósitos do julgador no caso concreto.
Na espécie, há de se indagar:
1) Se a execução provisória é permitida no rito do júri sob o fundamento de soberania dos veredictos, por qual razão a lei a condiciona à hipótese de fixação de pena igual ou superior a 15 (quinze) anos? Em outros termos, a soberania se mede milimetricamente, ou seja, em caso de aplicação de pena inferior a decisão não será soberana?
Com isso, não se está a afirmar que a execução deveria ser permitida para qualquer quantidade de pena, mas sim apontar que o dispositivo visa estimular a fixação de penas mais altas para possibilitar o drible hermenêutico e a prisão imediata, ainda que nenhum fundamento cautelar esteja presente.
2) A Constituição prevê a soberania dos veredictos sem defini-la normativamente, assim como expressamente reconhece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Logo, se fosse da vontade constituinte excetuar a aplicação, ao final do dispositivo transcrito teria constado “exceto em caso de condenação pelo Tribunal do Júri”. Simples, pois.
É grotesca a forma como alguns juristas conseguem ignorar completamente anos de Teoria do Direito em prol de opiniões e interesses pessoais, como se tudo não passasse de um mero jogo de poder. Basta rever o julgamento das ADC’s para perceber que determinado setor se fundou meramente em estatísticas. Esquece-se, contudo, que "a estatística é como um biquini. O que mostra é sugestivo, mas o que esconde é essencial" (Aaron Levenstein).
Aqueles que se valem do argumento de que as decisões do Júri são soberanas, isto é, que o Tribunal de Justiça (ou TRF) pode, eventualmente, anular a decisão, mas não substituí-las, portanto a execução provisória é permitida, são sádicos ou não possuem conhecimento de causa do que ocorre nas Comarcas Brasil afora, onde realmente o direito pulsa, exala o dor, longe da competência para julgamento dos Tribunais Superiores.
Por si só, o fundamento normativo de que a Constituição não excepciona o alcance da presunção de inocência é suficiente para questionar a constitucionalidade do dispositivo, mas para apresentar algo à reflexão pragmática dos que se fundam nesses critérios, registre-se não ser incomum verificar hipóteses em que o juiz-presidente transmude qualificadores rejeitadas pelo conselho de sentença em circunstâncias judicias inexistentes, para sopesar indevidamente a pena do réu. O que isso significa? Ora, que a prisão imediata, sem culpa formada, ficará a critério não apenas da subjetividade de quem decide sem sequer fundamentar (jurados), mas daquele que ignora os limites legais porque discorda do resultado do jogo.
Portanto, decisão não é escolha. Sentença não é expressar o sentimento. E juiz julga, não joga. Não há salvação fora da Constituição. Muitas vezes haverá discordâncias e isso faz parte do processo democrático. Entretanto, não é aceitável manipula-la a golpe de caneta para ler algo que não está escrito ou conferir sentido que agrade o intérprete.