É
imprescindível, antes de tudo, situar o lugar de fala: o de defesa do Estado de
Direito. A ruptura paradigmática proporcionada pela ordem constitucional
vigente exige que se veja o novo com os olhos do novo. Sem reducionismos. É preciso,
pois, abandonar-se os pré-juízos, que causam enormes prejuízos ao processo
penal democrático. Permita-se à reflexão sobre o que aqui se expõe.
Há um
preço a se pagar por se viver em um Estado de Direito, cabendo ao Poder
Judiciário a guarda intransigente do texto maior, que a todos indistintamente
submete. O devido processo legal é condição estruturante do referido modelo de
Estado, não sendo papel do Direito corresponder às expectativas sociais
criadas.
Com o
advento da Constituição Federal de 1988, o Ordenamento Jurídico passa a ter um
novo fundamento de validade. Nesse compasso, é dever do Poder Judiciário,
mediante controle difuso de constitucionalidade, aferir a compatibilidade das
disposições infraconstitucionais com o texto maior.
O
controle difuso de constitucionalidade pode – e deve – ser realizado por
qualquer juiz ou tribunal, o que decorre da responsabilidade política exigida (have a duty to) do Poder Judiciário.
A esse
respeito, de há muito tem apontado Lenio Streck:
“Tudo
isso me leva a dizer que, muito embora o controle difuso de constitucionalidade
esteja presente entre nós desde a Constituição de 1891, passados, pois, mais de
120 anos, ainda não se pode dizer – nem de longe – que os operadores jurídicos
tenham se dado conta da importância desse instituto. A área de conhecimento que
menos tem recepcionado o instituto é a do direito penal. Com efeito, é
praticamente impossível encontrar incidentes de inconstitucionalidade
relacionados a matéria penal. Uma das causas desse uso rarefeito advém da
própria crise que atravessa a dogmática jurídica, que (ainda) confunde vigência
com validade,
dando a esses dois âmbitos o mesmo status jurídico.
“(...)
com Ferrajoli é relevante lembrar que um texto legal
tem sempre dois âmbitos: vigência e validade, onde a validade tem predominância
sobre a vigência. Dito de outro modo, um texto legal pode ser vigente, mas pode
não ser válido. A validez é aferida através da interpretação que se faz da
Constituição. Ora, qualquer texto normativo, embora vigente, anterior à
Constituição ou não, somente terá validade se a sua norma (a norma, como dito,
sempre é o resultado da interpretação de um texto) for compatível com a
Constituição.” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional, 5ª edição.
Forense, 2018, p. 209.)
Questiona-se
o paradoxo nos qual estamos imersos: o Poder Judiciário só pode deixar de
aplicar uma lei em seis hipóteses, conforme aponta Lenio Luiz Streck, mas
quando assim o faz não é por nenhuma das hipóteses permitidas pelo exercício da
Jurisdição Constitucional e sim por discordâncias morais. A Teoria do Direito
reconhece as hipóteses a seguir como legítimas, em pleno exercício de controle
normativo, portanto:
i)
quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de
aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu);
ii)
quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias;
iii)
quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme
Auslegung);
iv)
quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklarung
ohne Normtextreduzierung),
v)
quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto;
vi)
quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio.
Quaisquer
outros motivos que não os acima listados, não dirão respeito ao exercício de Jurisdição
Constitucional, mas sim Ativismo Judicial, ocasião em o Direito é solapado por
moralismos de diversas ordens, que nunca a Constitucional, porque a ela ofende
impiedosamente.
De
mais a mais, importa dizer que a cláusula de reserva de plenário não se aplica ao
juízo monocrático de primeira instância, dado que este pode – e deve – exercer
o controle normativo, especialmente quando expressamente provocado (HC 69921, STF).
Por
fim, quanto ao cabimento/via adequada, registre-se que tramita no âmbito do
Supremo Tribunal Federal o RE 635.659, com repercussão geral reconhecida, o
qual embora não tenha determinado o sobrestamento das ações penais envolvendo o
tipo penal questionado, serve como parâmetro para o porvir e encorajamento aos
magistrados singulares, que em geral revelam-se tímidos quanto ao exercício de
controle de constitucionalidade difuso.
Superada
a questão prévia, quanto à possibilidade de exercício de controle difuso de
constitucionalidade, passa-se a expor os fundamentos concretos pelos quais o
art. 28 da Lei nº 11.343/06 se mostra inconstitucional.
O tipo
penal em comento dispõe:
Art. 28. Quem adquirir,
guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo
pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre
os efeitos das drogas;
II - prestação de
serviços à comunidade;
III - medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Não
obstante suprimida a pena privativa de liberdade (despenalização), até mesmo
vedada a conversão em eventual descumprimento das penas restritivas de direito,
fato é que ainda sim se tem medidas invasivas ao âmbito de liberdade
individual.
Indiscutivelmente,
o dispositivo aponta para a possibilidade de submeter o indivíduo que porta
droga para consumo pessoal a penalidades: prestação de serviços à comunidade
(reminiscência legal da mentalidade escravocrata que ainda perdura nesse país),
assim como advertência sobre efeitos das drogas e medida de comparecimento a
curso ou programa educativo (espécie de moralismo imposto). De mais a mais, não
raro uma condenação pelo art. 28 tem sido utilizada para fins de reincidência.
Nesse
compasso, o primeiro fundamento
para a inconstitucionalidade do tipo em comento é a ofensa ao art. 5º, inc. X, da Constituição Federal, ou seja, a norma
penal atenta contra os direitos fundamentais à intimidade e vida privada.
O segundo fundamento está
intrinsecamente relacionado ao anterior, consistindo na ausência de violação à bem jurídico alheio (princípio da lesividade),
de modo que a conduta do agente que não lesione terceiros, encontra proteção
constitucional para escolhas quanto ao ideal de vida boa.
A
criminalização do porte para consumo pessoal encontra-se, ainda, em manifesto
anacronismo com o próprio sistema de prevenção ao uso de entorpecentes
(SISNAD). Na prática, revela-se instrumento de desprezível etiquetamento,
porquanto não é da conta de ninguém se um indivíduo se embriaga imoderadamente
ou faz uso de entorpecente no interior da própria residência. Nesse sentido, em
que pese enormes restrições quanto ao Min. Luís Roberto Barroso, importa
colacionar belíssimo trecho proferido no voto do julgamento do RE supra,
rememorando os bons tempos em que assumia com vigor a tribuna sagrada e não se
portava como um populista em âmbito penal:
“Se o indivíduo na
solidão de suas noites beber até cair desmaiado na cama, pode ser ruim, mas não
é ilícito. Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de
dormir isso certamente parece ruim, mas não é ilícito. Pois digo eu, o mesmo
deve valer se ele em vez de cigarro, fumar um baseado entre o jantar e a hora
de ir dormir. Eu não estou dizendo que é
bom, apenas estou dizendo que o Estado não deve invadir essa esfera da vida
dele para dizer se ele pode ou não pode” – Min. Luís Roberto Barroso em voto
proferido no RE 635.659.
Em
síntese, o voto reflete a concepção da dignidade humana como valor intrínseco
ao ser humano, bem retratado na doutrina de Daniel Sarmento:
No
Direito Contemporâneo, a palavra “dignidade” tem sido usada em um terceiro
sentido, geralmente associado aos direitos humanos. A dignidade é empregada
como qualidade intrínseca de todos os
seres humanos, independentemente do seu status
e da sua conduta. A dignidade é ontológica,
e não contingente. Em outras palavras, todos os indivíduos que pertencem à
espécie humana possuem dignidade apenas por serem pessoas. (...)
O
homicida e o torturador têm o mesmo valor intrínseco que o herói e que o santo.
A dignidade humana, que não é concedida por ninguém, não pode ser retirada pelo
Estado ou pela sociedade, em nenhuma situação. Ela é inerente à personalidade
humana e, portanto, embora possa ser violada e ofendida pela ação do Estado ou
de particulares, jamais será perdido pelo seu titular.
É
essa dignidade que impõe a não instrumentalização da pessoa humana. Dela
resulta o imperativo de que cada indivíduo seja concebido sempre como um sujeito, e nunca como um objeto. Ela se concretiza na ideia
Kantiana de que as pessoas devem ser tratadas como fins em si, e nunca como
simples meios para a realização de fins alheios ou de metas da coletividade. Cada ser humano, em síntese, possui
um valor intrínseco. (SARMENTO,
Daniel. Dignidade da Pessoa Humana:
Conteúdo, trajetórias e metodologia. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p.
104-105).
Conclui-se,
portanto, que o exercício do controle difuso de constitucionalidade é um
poder-dever de todo e qualquer juiz ou tribunal, o qual, ao fim e cabo, pela responsabilidade
política inerente ao exercício da função, só deve aplicar uma lei quando esta
se mostre conforme o Texto Maior, fundamento de validade de todo o sistema.
Infelizmente, falta coragem, boa vontade e, não raro, estudo específico sobre o
Direito Constitucional.