A nosso ver, a admissão da
denominada execução provisória da pena privativa de liberdade no processo penal
brasileiro talvez seja o símbolo maior de uma cultura de desprezo à legalidade
constitucional e ode à implementação de um estado de exceção interpretativo
(suspensão da ordem jurídica em prol de juízos políticos-morais).
A execução provisória consiste na
possibilidade de se executar o título condenatório penal após o exaurimento da
apreciação da matéria de fato, o que, em regra, ocorre em 2ª instância. Ou
seja, uma vez confirmada a condenação pelo respectivo Tribunal (acórdão
condenatório), bem como exauridos os recursos dessa instância, possibilita-se
ao Estado impor imediatamente a prisão pena. Ocorre que isso encontra sérios
problemas normativos diante do Ordenamento Jurídico brasileiro.
O mandamento constitucional
preconiza que “[...] ninguém será considerado culpado senão até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, inc. LVII). Diante disso,
quis o Poder Constituinte (ilimitado e autônomo) estabelecer um marco para que
fosse aferida a culpabilidade no âmbito do processo penal Brasileiro.
O nosso ordenamento jurídico
adotara, portanto, mais que um conceito de culpabilidade fática, a qual se
exaure com o duplo grau de jurisdição. Aqui, exige-se também uma culpabilidade
normativa (exaurimento da apreciação de matéria de direito). Daí porque se
mostra equivocada as afirmações de que o direito do acusado à presunção de
inocência existe tão somente até o duplo grau de jurisdição, em uma
interpretação restritiva da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ora,
pode não ser o moralmente ideal para muitos, mas fora a opção constitucional
adotada e não se pode ignorar isso.
Dessa forma, restando pendente a
apreciação de uma discussão fática (autoria, materialidade, valoração da prova,
por exemplo) ou jurídica (ilicitude da prova, p.ex.), o trânsito em julgado não
se operou, razão pela qual não se pode executar o título provisório. Logo, não
há que se falar em trânsito em julgado parcial ou exaurimento de discussão da
matéria de fato, até mesmo porque questões de fato e de direito nem sempre se
cindem.
Argumentos como o de que o
recurso especial e o extraordinário não possuem efeito suspensivo (art. 637 do
Código de Processo Penal) não merecem guarida, uma vez que o dispositivo
referente, cuja redação é de 1941, fora revogado por legislação posterior, a
saber: artigos 105 e 107 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984)[1] e art. 283 do Código de
Processo Penal.
A criação fantasmagórica da
execução provisória da pena privativa de liberdade no processo penal decorre da
crença (ato de fé) em uma inexistente teoria geral do processo, negligenciando
o fato de que aqui lida-se com bem jurídico maior que o patrimônio, cuja perda
não se restitui. Aliás, isso precisa ser destacado, no próprio âmbito do
processo civil, é requisito para a execução provisória da sentença a
possibilidade de reversibilidade do dano (art. 520 do Código de Processo Civil).
Questiona-se: uma vez perdida a liberdade, como reparar o dano imposto a quem
teve provido o recurso em Tribunal Superior? Logo, questão de fato e questão de
direito são cisões possíveis para acautelar um ser humano sem culpa formada e
sem cautelaridade da medida?
A Convenção Interamericana de
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que possui status
hierárquico-normativo supralegal conforme decisão do STF (Recurso
Extraordinário nº 466.343), dispõe que “toda pessoa acusada de delito tem
direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente
sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas: (...) h) direito de recorrer da sentença
para juiz ou tribunal superior.”
Vê-se, assim, que a própria
Convenção Internacional prevê que cabe a cada Estado definir, por lei,
ressalta-se, o momento processual em que a culpa resta comprovada. Pois bem,
gostem ou não, no Brasil a culpa, para fins de imposição de prisão pena
(execução provisória), somente resta demonstrada com o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória, ou seja, isso requer o exaurimento de apreciação
de todas as matérias postas à submissão, sejam elas fáticas ou jurídicas.
No plano infraconstitucional, o
artigo 283 do Código de Processo Penal é de clareza solar ao expressamente
reconhecer que “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de
prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.”
Nesse passo, o princípio da
presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII, CF e art. 8, item 2, da CADH),
impede a imposição da prisão pena enquanto não legalmente formada a culpa.
Vê-se, pois, que a prisão antes do trânsito em julgado só é admitida a título
cautelar (prisão provisória ou prisão preventiva) ou pré-cautelar (prisão em
flagrante).
Ora, que costume inglório este
tido no Brasil: o de simplesmente ignorar a lei democraticamente produzida sem
declarar-lhe inconstitucional. Aprende-se desde o engatinhar acadêmico que uma
vez vigente, a validade da lei se presume, cuja aplicação somente pode ser
afastada mediante exercício de Jurisdição Constitucional.
Como explicar o fato de que, até
pouco tempo, o Superior Tribunal de Justiça rechaçava a possibilidade de
execução provisória da pena restritiva de direitos e admitia a execução da pena
privativa de liberdade? Voltamos ao medievo: uma prestação pecuniária, por
exemplo, que é restituível, não pode ser executada antecipadamente, mas a
privação da liberdade, não passível de reversibilidade, poderá ser executada
sem a formação da culpa? Pois é, tempos estranhos, bem ressalta o Min. Marco
Aurélio.[2]
Embora aparentemente pacificada a
questão com o julgamento das ADC's 43, 44 e 54 pelo Supremo Tribunal Federal,
ocasião em que prevaleceu a tese aqui sustentada , cabe-nos a vigília
incansável, eis que ensaia-se nos bastidores do Congresso Nacional alterações
de manifesta inconstitucionalidade, confiantes em posterior chancela da futura
composição da Corte Maior.[3] Passados cerca de 30 anos
da redemocratização, ainda temos que impugnar pechas ditatoriais como essa. A
execução de pena privativa de liberdade nunca é provisória, porque liberdade
tomada não se restitui. Simples assim.
[1] Art.
105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de
liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a
expedição de guia de recolhimento para a execução;
Art. 107.
Ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a
guia expedida pela autoridade judiciária.
[2] STF,
HC 141.342/RS, 1ª T., rel. Min. Marco Aurélio.
[3] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml e https://exame.abril.com.br/brasil/moro-pressiona-congresso-a-aprovar-mudanca-na-prisao-em-2a-instancia/